quarta-feira, 1 de abril de 2015

Veneno» Cap #1

Haha! Primeiro capítulo! Para quem não sabe, este blog é dedicado às minhas fics adoráveis e a dicas para escrever, e este capítulo em particular é a estreia da minha fic mais longa - isto é, aquela que mais estou persistir a escrever até agora. Passar os capítulos para o PC vai ser um nadinha problemático, mas já vou, em papel, em cerca de 12 capítulos, sendo que cada um dos meus capítulos tem entre 12 e 20 páginas, portanto são maiores que capítulos de fics normais. É quase como se fosse um livro. Mais informações aqui: www

Mentira
Era tudo verdade,
Pequeno pássaro.
Nunca te menti,
Desde o momento
Em que te coloquei as mãos.

Abri os olhos para a luz.

As manhãs nas montanhas da Tartaruga eram sempre belas. Sempre iguais, mas todos os dias inspiravam um tipo de encanto diferente. Sentia-se no ar, quando o respirávamos. Tinham um quê de mágico que deveria soar familiar para mim, que sempre vivi aqui, ladeado de magia, mas apesar disso ainda me fascinava. 

Coloquei um robe tecido no mais fino linho por cima do tronco nu e prendi o cabelo descuidadamente enquanto me dirigia ao extremo do quarto. Assomei à janela. A neve no cume das montanhas reflectia a luz morna em todas as direcções. Deixei que me cegasse por uns instantes. Depois, fechei os olhos. A quentura trespassou-me as têmporas e despertou cada um dos membros do meu corpo. Soube-me bem.

Para um herói, provavelmente a minha rotina iniciava-se de um modo muito preguiçoso e despreocupado, mas o mal tinha sido destronado, e não havia motivos para ter pressa. Haviam-se passado duas semanas desde então, porém, envolto pelo conforto do castelo, já nem me lembrava de qual fora a sensação de estar cara a cara com o Grande Terror, o rei mais tenebroso dos últimos séculos. Como se tivesse sido vivida por um outro eu. Ou como se a minha mente estivesse a tentar compensar as antigas dificuldades fazendo com que me esquecesse delas e pudesse dedicar total atenção à felicidade vindoura. Além disso, como é que eu tinha conseguido derrota-lo? A única coisa de que me lembrava era do seu sorriso diabólico, mas segundo boatos, o caminho incinerara à sua passagem, e muitos morriam só de enfrentar os seus olhos. Arrepiei-me. Pareciam mentiras, mas eu acreditava nelas.

Só não acreditava em mim próprio o suficiente para derrotar um ser assim. Tudo bem que eu fora treinado nas artes da magia, da espada e da aristocracia. Tudo bem que eu fora dos melhores alunos que os meus mestres já alguma vez tiveram. Mas nem sequer fui o melhor de todos! Por ser nobre, o meu destino era empurrar os de baixo nascimentos, por muito que estes se esforçassem para ter uma vida de valor, para eu usar como escada ao serviço da minha ascensão?

Mãos, sim. Não garras.
Podes não acreditar,
Mas estou aqui por um bem maior,
Estou aqui para ajudar.

Não sabia. Mas se era destino, então era muito mais cruel do que aparentava. Até um… amigo meu, do povo, tinha sido espezinhado quando se tentou revoltar pelas diferenças abismais entre os nossos status. Revoltar? Ele estava apenas a ter uma conversa menos animada comigo, apontando o que estava mal e deveria ser aperfeiçoado. Somente reclamando de algumas coisas e a dizer que não se importaria de estar fadado a morrer às mãos de um tirano se até lá pudesse viver com luxo, em vez de se preocupar todos os dias com uma morte por assalto ou à fome, eminente e nada digna. Então – como que a troçar das palavras dele – antes mesmo de eu me aperceber, os meus guardas acusaram-no de traição à coroa e acertaram-lhe com uma pedra no crânio. Morreu de hemorragia cerebral. O que sentia eu em relação a tudo isso? Não sei. Era triste, era injusto… mas não tinha nada a ver comigo. Além disso, era passado.

Um som insistente arrancou-me dos meus devaneios.

Mandei entrar. Imediatamente dois criados obedeceram, trazendo consigo túnicas e peças de roupa para me preparar para o dia de hoje. Conduziram-me ao quarto de vestir. Depois de estar devidamente arranjado, prenderam o meu longo cabelo ruivo numa trança, uma tradição da família real. Enquanto isso, dignei-me a observar a divisão. Tal como os meus aposentos, era octogonal, exibia paredes brancas, um rodapé de prata e culminava num teto pintado de azul, com padrões floreados ou espirais. Em cada parede havia algo pendurado: uma flor, uma vela, um mapa, um espelho… Mas a única que me chamava atenção era a parede da janela, que abria para uma varanda extensa e sem ângulos rectos, conferindo-lhe um ar pouco austero. 

Todo o castelo parecia frágil e harmonioso. Além das características dos meus aposentos – repetidas em diversas divisões – a estrutura exibia torreões esguios e cúpulas de cristal, arcos e videiras encimavam os caminhos, na maior parte do tempo cobertos de neve, o lago do jardim central permanecia gelado todo o ano e permitia que se fizesse patinagem, a brancura rodeando as plantas… Pátios e salas ao ar livre eram frequentes. A família real estendia as mãos ao frio, habituada a ele desde sempre. O frio, contudo, não excluía o conforto, nem a elegância: cadeiras estofadas de veludo azul escuro ou dourado, mesinhas baixas de vidro situadas entre poltronas; colunas translúcidas, inteiramente em diamante, sustentavam o teto; bustos e outros objectos decorativos, e em todas as divisões havia uma fonte com aquecimento interno, mantendo a água a circular sem ficar congelada. Se alguém se quisesse aquecer, encontraria uma ampla lareira bem no coração do castelo, a sala do trono.

Era verdade as confissões,
Era verdade os gostos,
Até os laços eram de verdade.
Não tenho culpa
Se não reconheces a liberdade.

Fui até lá ladeado pelos guardas, os meus passos ressoando no chão. Dispensei-os quando entrei na sala, seguro, sem bater à porta.

- Bom dia, Sua Majestade – cumprimentei, alegremente. 

O rei era meu pai, além disso, fazia questão de manter o ambiente acolhedor, embora não chegasse a ser informal. Daí eu o ter tratado por “Sua Majestade” e curvado a cabeça, mas fazendo-o num tom jovial e descomprometido.

- Bom dia, príncipe Yarley – Sorriu. O cabelo era idêntico ao meu, com excepção de algumas brancas, e a trança era mais comprida. Verdes, pálidos. Talvez cansados, mas gentis. Suponho que ver o filho crescer enquanto tudo apontava para a sua morte não deve ter sido fácil. Na verdade, não sei como é que eu próprio sempre aceitei isso tão bem. Por vezes tinha pena, porque além de ter vivido ocupado demais a treinar para derrotar o Grande Terror, não teria oportunidade de viver uma vida normal mais tarde. Mas nada me prendia verdadeiramente a este mundo, então, para quê temer o que viria depois? O meu grande objectivo era fazer os meus pais orgulharem-se de mim. E olha, até consegui sair vivo depois disso. Agora, todos nos ríamos desse facto.

Conversamos alguns minutos sobre assuntos fúteis até chegarem as minhas irmãs: A mais velha, Lenna, e a mais nova, Sulfira. Uma ruiva e outra loira, respectivamente.

- Pai, pai, é verdade que o Yarley está prometido em casamento? – Irrompeu Sulfira, radiante.

Eu o quê?!

O meu pai riu-se.

- Falarei de tudo isso durante o pequeno-almoço. Yarley, não te preocupes, tenho boas notícias – prometeu.

Suspirei, mas acabei por esboçar um sorriso tímido. Se calhar agora iria finalmente ter a vida típica de um nobre...

Pequeno pássaro enjaulado,
Eu nunca te traí.
O mundo que achavas
Ser teu por direito
Não era assim tão bom.

Flutuamos até ao andar de cima, onde, numa longa mesa de mogno, se encontravam dispostos diversos pratos em loiça de porcelana. Néctar, vinho do rio púrpura, chá de alfazema e leite de soja eram apenas algumas das bebidas. Para comer, pão branco, onde podíamos barrar manteiga de qualidade, compota de mirtilos, azeite com ervas ou uma pasta de flores de magnólia e morango. Também havia ovos cozidos, bolinhos de arroz e maçãs.

A minha mãe já lá estava, como sempre.

- Só no tempo que vocês demoraram lá em baixo já consegui ler oito páginas – reclamou. – Deviam fazer leis que permitissem às rainhas famintas atacarem a comida se a família demorar muito – Só se podia começar a refeição quando toda a gente estivesse à mesa. A etiqueta assim o exigia.

- Prometo que vou propor o assunto aos meus conselheiros, meu amor – brincou o meu pai. A minha mãe cedia facilmente.

- Não se devia brincar com isso… E as pessoas que estão famintas de verdade? Falei com o mestre da moeda, e ele diz que os impostos que impomos sobre os pobres são cada vez maiores – Protestou Lenna. Ela era a mais séria, justa e inteligente da família. Totalmente o oposto da irmã.

- Mas isso será temporário, querida. É apenas enquanto reparamos os danos causados pelo Grande Terror e nos preparamos para uma ocasião especial.

- O casamento! – Exclamou Sulfira.

Bebi uma golada de leite para ajudar a engolir o bolinho de arroz. Parecia que a conversa seria sobre mim.

- É verdade… - anuiu o meu pai – Yarley, que me dizes de uma aliança com o Povo do Dragão?

- Politicamente? Se conseguíssemos conquistar a lealdade da terra em que o Grande Terror reinava, seria perfeito. O próprio efeito que causaria na cabeça das pessoas seria enorme, como se garantíssemos a paz por muitos anos, e todos ficariam gratos e calmos.

- Bem, já que concordas nesse aspeto, e se decidíssemos apresentar-te à princesa desse reino amanhã? Como prometidos, embora possamos cancelar se não gostares dela.

- … Vai ser tão estranho, pai – admiti, ruborizando.

- Nunca imaginei que tu casarias. Mas fico feliz por poderes aproveitar a tua vida como um homem… E cá entre família, acho que a princesa terá sorte por casar com alguém como tu – piscou-me o olho.

A minha mãe riu, e Lenna também. Eu ri, mas foi por Sulfira se queixar de que eu já era famoso demais.

Era uma questão de perspectiva,
Estavas do lado errado da jaula.
Mentira, verdade…
Meras palavras.
Pássaro, canta.

“Aproveitar a vida como um homem” – A frase do meu pai fazia sentido, mas deixou-me mais reflexivo do que devia. Nunca tinha pensado em mim nesses termos. Conhecia óptimos companheiros com quem já tinha partilhado episódios, e provavelmente encantara muitas mulheres com que falei, mas nunca me envolvi com nenhuma delas, apesar dos meus 17 anos. Nem fisicamente, nem emocionalmente. E agora, ia casar. Essa ideia deixava-me satisfeito, mas ligeiramente nervoso, porque além de não conseguir imaginar-me a viver ao lado de ninguém, tinha um receio vergonhoso de me revelar uma desilusão.

No dia seguinte, conheci a princesa Nãmira.

Apresentava-me no meu melhor: o cabelo entrançado misturava-se com fitas douradas; A camisa de algodão branca seria simples, se não fosse o intricado padrão tecido a ouro no peito e no colarinho; Calças nos tons do fogo, botas escuras forradas com pêlo de raposa e uma capa dourada decorada com escamas de dragão. As cores que ostentava hoje não seriam a minha primeira opção – todos os habitantes das montanhas da Tartaruga envergavam por norma branco, azul, prata ou violáceos. Porém, era uma tradição que pretendentes se conhecessem vestidos com as cores características do reino um do outro, de forma a simbolizar que costumes diferentes não seriam um impedimento ao amor.

Alegra o teu próprio mundo,
Canta.
Agora já podes voar.
Pequeno pássaro,
Eu nunca te menti.

Nãmira não se comparava aos rumores. Estes diziam que ela era a mulher mais bela do Povo do Dragão. Na realidade, devia ser a mulher mais bela do mundo.

Cabelos violeta longos, lisos e brilhantes, caíam em cascata ao longo das suas costas, dando-lhe pelo meio das coxas. Por muitas palavras que se usassem, não seriam suficientes para descrever o quanto o cabelo a favorecia. Preso com tranças do próprio, as repas longas dividiam-se para lhe emoldurar o rosto arredondado. Exibia pequenas flores azuis entrelaçadas nas madeixas.

Depois, os olhos. Grandes olhos redondos, rasgados nos cantos, enquadrados por pestanas escuras. Eram de um violeta tão intenso quanto o cabelo, e como se essa característica exótica não bastasse, a princesa ainda a conseguiu salientar envergando um vestido numa escala de roxos. O vestido cruzava à frente, deixando os ombros a descoberto, e caía em camadas até aos tornozelos expostos. Duas fitas de cetim longas davam várias voltas em torno da sua cintura. Ela não era muito alta, e tal era proporcional aos membros finos, mas que pouco tinham de flácidos. Os únicos acessórios que tinha eram um pendente no meio da testa e duas fitas entrelaçadas ao longo dos braços.

Eu e a minha família aguardávamos pela família dela no jardim central quando eu escutei uma risada cristalina. Voltei-me instintivamente, e foi então que a vi, em todo o seu esplendor. Provavelmente rindo-se de alguma piada do príncipe que a protegia, ou da dama de companhia. Todos pareciam tranquilos e bem-dispostos. Andavam de tal forma descontraídos que pareciam pairar.

Ela olhou para mim quando já estávamos próximos. Sustentou um sorriso sereno, mas a sensação que transmitia era de que sustentava todo o meu mundo. Sentia-me quase idiota por me deixar cativar tão facilmente.

- Deve ser a princesa Nãmira – constata o meu pai, com um cordial aceno de cabeça – Estamos encantados por ter aceite tão rapidamente a aliança. Esperamos não desapontar as suas expectativas.

Nunca neguei que te libertaria
E entraria na tua jaula.
Se não viste,
Estavas cego por ti próprio.

O príncipe avançou.

- Não há como nos desiludirdes, de todo. As montanhas da Tartaruga possuem encantos que nunca veríamos nas terras do Dragão, e é um privilégio para a minha irmã casar com o herói que expulsou as trevas do nosso próprio lar. Como afirmastes, esta é a princesa Nãmira, e eu sou o seu irmão, Lamaken. O nosso tio está demasiado ocupado a gerir o reino, então enviou-me em vez dele. Desempenharei também o papel de embaixador. 

- É um prazer conhecê-los – disse, recordando a etiqueta – Se a princesa permitir, gostaria de conduzi-la até à mesa. Temos uma refeição à espera, certamente estarão cansados da viagem. 

- Não tenho motivos para recusar – respondeu. A sua voz era doce, mas firme, não de um agudo irritante. Combinava perfeitamente com ela.

Estendi o braço, que ela aceitou, e dirigimo-nos todos para as mesinhas de chá dispersas no jardim. Enquanto comíamos, aproveitei a oportunidade para conhecer a princesa um pouco melhor, e testar os meus conhecimentos acerca do povo do Dragão. A terra do Dragão era quente, atravessada por rios de lava, e as fontes de água estavam sujeitas a uma manutenção estrita. Daí os irmãos reais se terem mostrado encantados perante os flocos de neve que caíam no jardim, e as camadas de branco que cobriam tudo delicadamente. 

- A paisagem é digna dos contos de fadas que me contavam em pequena – suspirou, sonhadora.

Bonitinha, embora essa afirmação me parecesse um tanto infantil. Ela reparou na minha ausência de comentários, erguendo uma sobrancelha. 

Pequeno pássaro,
Agora que podes voar,
Sei que almejas vingança.
Mas olha à tua volta:
Nada de grades.

- O que foi? Eu não sou nenhuma criança. Foi apenas um pensamento nostálgico – retorquiu, como se me tivesse lido os pensamentos – Adoro coisas como um bom duelo, um bom ao ponto de ser registado na história.

- Eu adoro os cavaleiros – brincou Sulfira.

As minhas irmãs, Nãmira e a aia riram-se. Sulfira, apesar de ser a mais nova, era bastante engraçada e até um pouco atrevida para a idade. Quando o silêncio estava prestes a voltar, agarrei a minha deixa e dirigi-me novamente à princesa.

- Gostaríeis de ver um duelo agora? – Inquiri

Ela interrompeu um movimento da mão que levaria graciosamente uma colherada de pudim à boca. Olhou para o irmão, e sorriu, divertida. O irmão correspondeu, entendendo, e olhou para mim. Anuí. Erguemo-nos ambos e dirigimo-nos ao centro do jardim, onde diversas mandalas haviam sido pintadas no terraço, cuja neve era constantemente limpada. Fiz sinal a um criado para que me trouxesse uma arma – qualquer uma servia. Tinha sido treinado com todos os tipos. Desde que as lâminas estejam afiadas e o material seja de qualidade, não iria falhar. Tinha superado todos os meus mestres. Provavelmente, porque agarrei a vontade que tinha de derrotar o Grande Terror.

Entregaram-me uma espada de uma mão. Escolha típica. Já tinham insistido várias vezes para que eu mandasse forjar uma arma só minha, que se ajustasse ao meu estilo de luta, decorado mediante o meu gosto, nomeada por mim… De forma a que fosse como um membro meu. Equilíbrio, punho, materiais, tudo personalizado, tal como era frequente com os heróis e um punhado de guerreiros lembrados nas lendas. As armas fazem parte dos heróis com eles. Lembrei-me disso quando notei a cimitarra que Lamaken desembainhou. Bem afiada, punho de duas mãos, cabo feito de ouro puro. Não sei como é que nunca desbotou com as altas temperaturas do sul, mas sei que se assemelhava imenso a uma arma decorativa.

Mesmo que não
Tenhas herança,
Mesmo que não
Tenhas esperança,
Tens o mundo.

Tudo bem. Chegava de arrogância e julgamentos infundados. O meu oponente era um príncipe. De certeza que foi bem treinado na arte da guerra. Ou talvez não, mas não importava. “Esvazia a mente”. A ideia não era concentrar-me em não pensar em nada. Era simplesmente não pensar. Não importavam as capacidades do meu oponente, apenas responder aos movimentos. Nem muito depressa, nem devagar. Fitei-o. Notei que também tinha profundos olhos violetas, como a irmão. Por um instante, quase me perdia neles. Então, fleti os joelhos. E comecei com uma jogada suja.

Impeli um pé na direção da sua cimitarra e recuei, correndo na direção oposta. Como deduzi, Lamaken não se deixou enganar. Elegantemente, atacou o meu flanco esquerdo, mas defendi com facilidade. Aproveitando o momento em que as nossas armas se cruzaram, girei o pulso, e fiz a lâmina deslizar até perto dos seus dedos. Esta era apenas uma demonstração, não era suposto magoar o meu oponente. Contudo, já descobrira que ele era hábil o suficiente para sair ileso de uma manobra tão banal.

Recuei. Estávamos apenas a aquecer. Enquanto nos estudávamos, deslocando-nos em círculo enquanto mantinham a distância um do outro, procurei uma brecha na defesa do inimigo. O ombro estava desprotegido. Mas seria ridículo fazer um ataque direto, sabendo que ele bloquearia. Por outro lado, se eu insinuasse que ia atacar uma zona protegida, ere apenas reforçaria a defesa atual, e quando eu atacasse o ombro, ele não teria tempo para mover a cimitarra.

Investi, e funcionou – mas, claro, travei a própria espada a tempo. Capacitado para continuar, Lamaken impeliu a arma para a minha barriga. Um guerreiro normal não teria tempo de recuar, e eu também não, mas invoquei um feitiço de levitação. Fiz a escolha rapidamente, mas nem por isso foi descuidada. Transferi parte do meu peso para o ar, o que me permitiu saltar acima da cabeça do príncipe e, além disso, tornou o ar mais denso, restringindo os seus movimentos. Tive tempo de sobra para preparar a espada. 

A todos um mundo quero dar.
Ficarei aqui,
A governar,
Porque nunca te menti.

Mas Lamaken era inteligente. Transferiu o meu próprio peso para o chão, libertando-se e forçando-me a reavê-lo por debaixo do solo. Isso causou um ligeiro tremor de terra, prejudicando o meu equilíbrio ao aterrar. Enquanto caía, curvei as costas para trás e fiz a ponte. Sequencialmente, ergui os pés e pontapeei-lhe os nós dos dedos, fazendo-o segurar a cimitarra com menos firmeza. Após aterrar com um mortal para trás, fui forçado a recuar enquanto Lamaken investia numa série de ataques rápidos. 

Rápidos demais. Ele estava a usar um feitiço de auto-aceleração. Atacava com tanta velocidade e em tantas direcções diferentes que mesmo com a minha habilidade seria impossível bloquear tudo. Esta não era uma tática usada para derrotar os inimigos, pois a velocidade impedia que fossem causados ferimentos profundos, mas servia perfeitamente para destabilizar. 

Ele aproveitou para encerrar a batalha. Acelerou ainda mais e, a meio de um golpe, teletransportou-se para trás de mim. Seria uma manobra perfeita – com o inimigo desorientado e a recuar, seria impossível escapar de um ataque vindo das costas. Mas não funcionaria comigo. Tinha aperfeiçoado um truque para esquivar a situações destas. As minhas mãos e pés moveram-se sozinhos, de tão mecânico era o ato. Interferi na velocidade dele, moldei-a à minha volta… E a situação inverteu. Por trás dele, apontava-lhe a espada ao pescoço. 

Tinha vencido.
Fez-se silêncio.
Depois, a princesa recomeçou a rir, incrédula e fascinada.

- É a primeira vez que vejo o meu irmão a ser derrotado! – comentou – Foi incrível!

Libertei Lamaken e curvamos a cabeça um ao outro, em sinal de respeito. Sorri. Já sabia que era bom em duelos, mas era sempre gratificante vencer algum novo, principalmente quando era reconhecido por alguém que tinha em conta. Sentia-me feliz por ver que Lamaken aceitaria bem partilhar a felicidade da irmã comigo.
Nãmira, a aia e o príncipe ficariam nas montanhas da Tartaruga por uma semana. Depois, regressariam ao seu reino por outra semana, decidindo o que queriam trazer para o castelo, ao qual regressariam na véspera do casamento. 

Pequeno pássaro,
Desconhecias a realidade.
Mas há sempre
Uma primeira vez
Para estender as asas.

Nunca chegou a realizar-se…

Eu estava feliz. Principalmente para as Casas reais, os casamentos eram encarados como um acontecimento político, não importando a beleza ou maneira de ser dos noivos. Embora ultimamente os casamentos por conveniência fossem cada vez mais raros, se um homem e mulher não gostassem um do outro, azar. Mas mesmo assim, eu passei a gostar de Nãmira. Ela era doce, amistosa e educada, mas também prática, e nada aborrecida. Permitia-se reclamar dos vestidos compridos demais e do cabelo incomodativo, algo incomum de ver nas mulheres, que ela acompanhava sempres de caras embirradas mas fofas, e críticas inteligentes – assim, ninguém diria que ela estava a ser indelicada. Por vezes, revelava mais sobre os seus gostos: Adorava pintar, participar em bailes e ver duelos, a sua comida favorita era empadão de carne e gostaria de já ter idade para beber vinho. Costurar era uma atividade que a entediava profundamente, então em pequena adquirira o hábito de fugir das aulas para treinar arco e flecha. Passava horas a olhar para mapas, dos quais não percebia nada embora fosse competente em áreas além da geografia, e sentia-se hipnotisada.

- É provável que já tenha olhado para montes deles ao contrário e nem me tenha apercebido – admitiu – mas, se calhar, perderiam o interesse se eu os compreendesse. Não é idiota?

- Não, eu entendo. O desconhecido fascina-nos precisamente porque podemos imaginar imensos significados e cenários acerca dele. Sei muito bem o que é isso. – Afirmei, pensativo.

- Bem, então somos dois idiotas. Um rei e uma rainha delirantes. 

Sorri em concordância. Passeávamos no jardim, lado a lado. O sol escondia-se atrás do cume das montanhas, cobrindo o céu com um tapete outonal. As botas enterravam-se na neve, deixando um rasto de pegadas semelhantes no tamanho, mas não no formato. Estendi a mão e colhi um fura-neve, que entreguei a Nãmira. A flor era semelhante a uma tulipa, mas era branca e o caule tombava para baixo. Era fácil de encontrar em terras frias.

Canta, voa.
Até o presente,
Que no futuro se tornará passado,
É de verdade.

Ela subiu a um muro e fez equilíbrio nas ameias, apoiando-se por vezes em mim.

- Um casal de idotas… - voltou a murmurar – Parece-me divertido.

Ri.

- Também acho. É muito estranho, para ser sincero. Nunca julguei que casaria com alguém, a calhou-me a princesa mais bela de todas – tentei brincar de forma lisonjeira.

- Bem, suponho que também não me posso queixar do meu príncipe, – alinhou na brincadeira – mas prefiro acreditar que foi o destino que nos juntou, aqui e agora. Ei, vamos faltar ao jantar de hoje?

- É a última noite em que estamos juntos antes de regressares ao teu reino, até à grande cerimónia – constatei.

- Precisamente. Não precisamos de passar esta noite sob os olhares de aprovação ou reprovação da família. E eu quero ver a luz das estrelas contigo. Não se vêm assim no sul.

Cedi. Continuamos a passear até que nos sentamos num banco de jardim, olhando o céu. Despi o casaco de peles e entreguei-o à princesa, ficando apenas de colete. Encostou-se a mim, apoiando a cabeça no meu ombro. E ficamos assim, enquanto as horas atravessavam a noite, trocando algumas palavras reconfortantes. Até que começou a fazer-se tarde e nos erguemos para ir cada um para o seu lado.

Voltei-me para ela. O ser sorriso terno captou toda a minha atenção. Peguei-lhe nas mãos com delicadeza.

- Adoraria não ter de me separar de ti… - suspirou Nãmira, tão descontraidamente que não entendi as implicações daquela frase.

E foi nesse instante que a minha vida se desmoronou. 

O meu corpo foi percorrido por um choque eléctrico, paralisando-me. Parecia que o tempo tinha parado - só lá estava eu, o mundo a andar à roda e o meu coração descompassado. Antes mesmo de me aperceber, os meus joelhos cederam. Só não caí de cara no chão porque a princesa segurou a minha cabeça entre as mãos, levando-me a olhar para ela.

Como é que num segundo pode acontecer tanta coisa?

- Não te esqueças de que as mulheres também sabem usar magia – depositou-me um beijo na testa.
Antes de os meus olhos se fecharem, vi o seu sorriso alternar entre a gentileza e o esgar malicioso e satânico do pai…

Estavas cego por ti próprio.
Nunca te menti…


E então, que acharam? Sei que o começo foi lento e um bocado meloso, mas a ideia era essa, espero que a reviravolta no final desta cap vou tenha surpreendido >.< Critiquem à vontade, e quero saber em quê que posso melhorar. Sei também que o Yarley ainda é um palerma, mas ele vai crescer, com tempo. Já agora, aqui está um aviso para quem não leu a ficha inicial: a fic vai conter yaoi.

Sem comentários

Enviar um comentário