segunda-feira, 6 de abril de 2015

Veneno» Cap #2

E voilá, trago o segundo capítulo da minha fic (o terceiro é o último que tenho passado no computador, é melhor apressar-me...). Como prometido, aqui finalmente as coisas começam a aquecer e o nosso adorável protagonista ruivo, vendo arrancada a sua dignidade, sente-se desesperado e desorientado. Neste e no próximo capítulo tentarei transmitir uma onda bem grande de sofrimento, se alguém se sentir sufocada, avise. Ou então, avisem se acharem que as sensações não estão intensas o suficiente, pois eu quero mesmo que elas passem em condições. Informação e índice sobre a fic Veneno: www

Queda
A primeira coisa de que me apercebi ao recobrar os sentidos foi do ar frio e pútrido. Inalei. De certeza que estava nas masmorras do castelo, e nem saberia dizer porquê. Sentia correntes vincadas na carne, e quando compreendi que haviam restringido os meus movimentos, o meu coração começou a martelar com força. Nada bom estava por vir. Nada bom. Nada. Bom. Tentei acalmar a respiração, mas essas certeza estava a deixar-me em pânico e…

Abri os olhos. Pestanejei várias vezes até conseguir enxergar na escuridão, que não era absoluta, mas suficiente para me fazer desperdiçar alguns segundos. Contei dois, três, seis vultos. A minha família, Lamaken e Nãmira. Todos olhando para mim com um ar pesaroso.

- Pai?... O quê que estou a fazer? – Inquiri. A minha voz soou algo estrangulada, provavelmente dos nervos que se estavam a acumular.

- Não sabes, Yarley? Não tentes alegar inocência.

Inocência…

- Olha, pai, eu não sei de quê que sou suspeito, mas realmente não fiz nada, foi a princesa Nãmira que tramou alguma coisa – Tive receio de estar a dizer tudo demasiado depressa, mas se eu não me explicasse agora, talvez nunca tivesse outra oportunidade para o fazer – Tens de acreditar em mim! 

O seu olhar permaneceu endurecido.

- Os criminosos negam sempre o que fazem na chance de manter a vida confortável que levavam até serem descobertos – proferiu.

- Pai, vamos lá…

- Basta, Yarley! – Berrou. Soou como uma chapada.

No silêncio que se seguiu, apenas se ouviam as nossas respirações. A minha em particular, por estar mais acelerada, devido ao medo intermitente e ao desconforto, inegáveis. Quem interrompeu foi Nãmira.

- O meu irmão usou um feitiço de gravação, príncipe. Todos viram como me tentou matar e um criado se sacrificou por minha causa.

Notei um novo vulto. Uma massa de carne ensanguentada envergando um casaco azul, embora tingido, com brocados. Era a vestimenta de um criado. O corpo explodira desde dentro, implodira. Era um feitiço que eu realmente controlava muito bem. Todos o sabiam. Seria natural incriminarem-me com uma prova tão clara, principalmente se a princesa o afirmasse. Mas como é que me teriam gravado…? Eu não assassinei ninguém! E tinha de conseguir provar isso antes de ser sentenciado.

- Tenho a certeza de que, se investigarmos, eu serei declarado inocente – Forcei-me a manter a voz controlada e encarei o meu pai nos olhos – Não tens de me punir por algo que não fiz.

Ele suspirou.

- Por muito doloroso que seja para mim como pai, como Rei, é meu dever fazer a justiça no reino. Já sabemos toda a verdade. Lamaken, mostrai a gravação de novo.

Ele obedeceu, avançando e voltando a palma da mão para cima, onde se formou um círculo de luz que reproduziu imagens horripilantes. Não sabia como acreditar nelas. Porém, de facto, o corpo daquele assassino era meu. A sorte não estava ao meu lado de maneira nenhuma… 

Fiquei tão deprimido que perdi as forças. Cerrei os lábios. Baixei o olhar. Cabisbaixo, não protestei mais, só distraidamente registei tudo o que se passava À minha volta: o meu pai a proferir a sentença de exílio, Lamaken a apresentar condolências, a minha irmão Sulfira a chorar – logo ela, que estava sempre sorridente… Se não me sentisse tão vazio, essa cena partir-me-ia o coração. Saíram da cela, Nãmira em último lugar. Só me atrevi a erguer o olhar para ela.

Exibiu um sorriso terno e piedoso como sempre, desta vez acompanhada de uma expressão tão próxima do choro que quase acreditava ter sido mesmo eu a tentar matá-la. Então, voltou a fazer o esgar de escárnio do seu pai. O grande Terror… Foi assim que compreendi que não o matara na batalha, pois ele continuava a residir na filha, e possivelmente no filho, contra todas as explicações. Todos os meus anos de vida tinham sido desperdiçados.

Uma força surgiu dentro de mim, consumindo o meu desânimo, fazendo-me revoltar-me.

- Pai, espera! – Gritei – Foi ela, ela é filha do Grande Terror, não podes ignorar-me, estás a correr perigo! – Comecei a contorcer-me contra as correntes – Mesmo que me exiles, escuta-me, não podes arriscar o reino! Deserdar-me, exilar-me, isso não vai resolver nada!... – Fiquei enervado e descontei toda a força que tinha nas palavras seguintes – Arruina a tua vida se quiseres, mas não podes arruinar a vida das minhas irmãs por ARROGÂNCIA e por te agarrares a regras ESTÚPIDAS! PAI! PAAAAAI!

- Já não és meu filho! – Consegui escutar, ao longe. Uma porta bateu com força.

Ofeguei.

Entrou um servo na cela. Trazia uma adaga na mão, e aproximou-se de mim.

- Afasta-te! – Ordenei, sentindo que o meu medo estava a vir à tona – Não podes tocar-me, sou o príncipe mais velho!... – Ele não obedeceu, agarrando na minha longa trança – Afasta-te, fedelho repugnante!

- Tu é que saíste um fedelho repugnante – interveio uma outra voz.

Ergui o olhar. Lamaken, fitando-me com duas íris de um violeta mortífero.

- Que estás aqui a fazer? – Cuspi as palavras

- O teu amado pai, quero dizer, Sua Majestade, disse que estás a ser indecente por incriminares a minha irmã e que seria mais digno se fosses castigado de boca fechada – prosseguiu ele, ignorando as minhas palavras. Bem, na verdade, quem acrescentou a última parte fui eu.

Ia responder-lhe. Ia carregá-lo com todo o ódio que sentia, principalmente por ele apoiar a irmã, ter gravado algo que nunca fiz e ainda por falar comigo daquela maneira. Queria arrancar-lhe alguma da sua confiança desprezível.

Contudo, nesse momento, o criado cortou a minha trança.

Só assim é que caí em mim. Ser exilado era muito mais do que uma discussão familiar. Ser exilado era ser deserdado, deixar de pertencer a uma família, sair da realidade que sempre conheci e perder toda a dignidade que tinha. Era carregar um fardo de um crime, um fardo de vergonha, atirado para uma terra que não me pertencesse. A trança era precisamente um dos símbolos da minha dignidade, um dos símbolos da linhagem real. Demorara anos a crescer. Sem ela… Quem era eu sem ela?

Lamaken tornou a falar:

- Fui autorizado por Sua Majestade a tratar da fase seguinte. – Voltou-se para o criado – Vá buscar o braseiro.

Este correu a obedecer. Enquanto as chamas aqueciam o ferro, eu fitava o chão coberto de longos fios de cabelo, o pânico apoderando-se de mim. Afloraram lágrimas aos olhos por tudo o que me estava a ser roubado. “Não podes chorar.” Sustive-as. Ou tentei, arregalando os olhos. Mas já estava a tremer quando Lamaken aproximou o ferro em brasa da minha testa, e ao pressioná-lo contra a pele, escorreram continuamente. Eu não me apercebi… Estava demasiado ocupado a uivar de dor.

Diz-se que ser marcado a ferro deixa feridas na alma. Agora, sabia o quanto era verdade.

Lamaken aproximou-se de mim e sussurrou-me ao ouvido:

- Já dispensei o criado – ao compreender que ele me diria um segredo, quase me esqueci de como se respirava – Sei que o que dizes é verdade, portanto vou ajudar-te a fugir do castelo. Se não te deixares apanhar, nem terás de ser exilado, apenas deserdado. Vai para sul. Procurarei lá por ti.

Atordoado, não movi um músculo após olhar para ele e sentir vergonha por ser visto neste estado, coberto de lágrimas, sem parecer quem realmente era, disposto a depositar toda a minha esperança em quem quer que se oferecesse para me ajudar, mesmo que essa pessoa fosse aliada dos meus inimigos. Ajoelhou-se, canalizando um feitiço para enfraquecer as correntes e depois as quebrar. Deu-me um empurrão para me obrigar a mexer os pés, e segui-o, por corredores e câmaras que nem eu mesmo conhecia. Guiou-me até ao exterior, usando magia para nos camuflar, e manteve a caminhada num ritmo acelerado. Nem acreditava no que estava a acontecer…

Chegamos à muralha, e ele voltou a recorrer à magia para afastar as pedras e os diamantes – algo que só podia ser feito desde o interior – entregando-me uma capa acastanhada. Fez-me prestar-lhe atenção.

- Para onde vais? – Inquiriu, seriamente

- Par Sul – respondi, confirmando que sabia.

Enxotou-me para o exterior, em pleno dia, e fechou a muralha. 

Só me restava correr em frente. Sem saber bem para onde ir, sem armas para me proteger, dinheiro ou um lugar onde passar a noite. Não tinha a mínima ideia sobre como sobreviver. Mas corri, corri rumo à linha do horizonte, pela neve que se estendia em camadas infindáveis, pisando terras onde me esperavam novas realidades, tão duras, que preferiria nunca ter conhecido…
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Só parei de correr quando o sol se estava a despedir. Tinha finalmente alcançado os portões da Cidade Gelada, que se fechariam ao cair da noite. Nunca esperaria que custaria tanto a alguém como eu, com uma preparação física aceitável, percorrer esta distância que sempre me parecera tão curta de carruagem. Ofegante, aproximei-me dos guardas, que se colocaram imediatamente a postos. 
- Mais um viajante cansado – comentou um deles.

“Um príncipe” – corrigi mentalmente. Mas sabia que pronunciá-lo seria o mesmo que denunciar que era um fugitivo, portanto engoli o orgulho e acabei por deixá-los julgar-me mediante as aparências, fosse ou não insultuoso para mim.

- Qual é o propósito da tua visita? – Inquiriu o segundo guarda.

- Vou para sul ajudar uns familiares – menti – e preciso de um sítio onde passar a noite.

- Entra lá, amigo. Desde que não venhas com más intenções, a nossa cidade será hospitaleira – afirmou o primeiro.

Esperava que sim. Não sabia de onde tinha tirado aquela mentira, mas duvidava que conseguisse arranjar mais caso me submetessem a um interrogatório, e entrei, grato.

A cidade, por ser parte do domínio das Montanhas da Tartaruga, prevalecia sob camadas de neve que a forçaram a tornar-se mais bela e bizarra que uma cidade usual: As casas tinham telhados escuros e retorcidos, cuja base fora construída sobre estacas de mogno, de modo a que mesmo nos invernos mais rigorosos as entradas não ficassem obstruídas pelos nevões. As escadas eram da mesma madeira que as estacas, mas suportadas por pedras, para garantir que, caso as tábuas apodrecessem, ninguém poria um pé em falso. As janelas eram feitas de vidro duplo – quando o meu pai foi informado, há alguns anos, sobre como o ar entre os vidros era um bom isolador da temperatura, aplicamos imediatamente a medida à cidade. Muitos detalhes aqui presentes recordavam o castelo: as fontes congeladas, os arbustos e flores resistentes ao frio, até mesmo os aros prateados que conduziam os visitantes do portão à praça principal. Claro que eu mal reparei em tudo isso; Era a única realidade que eu conhecia, não representando para mim nada de especial. Além disso, estava desesperadamente concentrado em esquecer a desgraça que se abatera sobre mim, e quanto maior fosse o número de objectos familiares que me rodeava, mais facilmente a minha mente se convenceria de que estava tudo bem.

Deambulei até à taberna que melhor conhecia, Lírio de Prata. Era um estabelecimento leal à coroa e seguro, onde raramente se encontravam rufiões, vigiado por alguns guardas e com condições abastadas.

Dirigi-me ao balcão de cristal polido. Aguardei imenso tempo até que a dona do estabelecimento, uma mulher com cabelos acobreados a ficar grisalhos e rugas de expressão a salientar a sua severidade, se dignasse a olhar para mim.

- O quê que um maltrapilho como tu está aqui a fazer? – Exigiu, rudemente. Os seus modos combinavam com a sua pose impaciente.

- Queria um quarto e uma refeição quente – pedi, tentando não pensar em estatutos.

- Dinheiro? - Foi direta

- Escute,  - respondi, baixando o tom de voz para algo mais confidente – neste momento não tenho nenhum, mas sou da família real, e poderei compensá-la devidamente se me ajudar.

Ela deitou-me um olhar demorado. Depois, desatou a rir às gargalhadas, pousando o copo que estava a limpar para se agarrar à barriga com ambas as mãos.

- Este puto acha mesmo que a sua mentira foi boa! – Exclamou, para todos os clientes ouvirem – Olhem-me para isto, um magricela sem dinheiro a dizer que pertence à família real!...

Todos desataram às gargalhadas. Senti o mundo a andar às voltas.

Estavam a gozar comigo, e com toda a razão. Como é que poderiam acreditar? Um nobre nunca anda sem ouro, nem sem uma escolta. Exceto se tivessem sido deserdados, mas esses não interessavam, porque não poderiam pagar. O pior é que eu era exactamente isso. Até me custava a digerir a palavra. Deserdado… Não tinha a minha trança, as roupas finas estavam escondidas sob a capa puída, a marca feita pelo ferro em brasa na minha testa ainda pulsava e humilhava-me, e estava cansado – nunca corri por tanto tempo na minha vida… Na minha vida que desmoronara de um momento para o outro, algo em que ainda não conseguia acreditar. Só queria comer e ir dormir. Depois… passaria. Tinha de passar. Não saberia como prosseguir se não passasse. 

Os guardas estavam a dar-me um tipo perigoso de atenção, então arrastei-me até à saída. Puxei o capuz até aos olhos, na tentativa de fazer com que as pessoas me esquecessem e abafar as gargalhadas que se pareciam multiplicar, ricochetear nas paredes e agarrar-se de novo a mim, como se rissem da minha desgraça. Como se tivessem aguardado o tempo todo para aquilo com que conspiravam acontecer, e após se realizar, a sua felicidade – a minha infelicidade – explodia.

Não podia desistir, ainda.

Agarrando-me à ideia de que tudo não passava de um pesadelo, que se romperia quando fosse dormir, visitei as estalagens da cidade uma a uma, perguntando-me se não teria sido melhor procurar o apoio de alguma das casas nobres na encosta das Montanhas. A todas contei a mesma história, e por todas fui desfraudado. A cena repetia-se: risos e olhares lançavam-se na minha direção, fazendo-me sentir pequeno, mísero e zonzo. Quase amaldiçoado. Isso aconteceu tantas vezes – quantas estalagens é que haviam mesmo, na Cidade Gelada? – que me davam cada vez mais certezas de que estava num sonho, daqueles em que desconhecemos o objectivo, acontece tudo menos o que era suposto acontecer e parece que passamos pelo mesmo local mais de uma vez. Acho que fiquei tão amedrontado perante essa ideia, de me encontrar num sonho dolorosamente repetitivo e interminável, que me atrevi mesmo a entrar em estalagens de menor qualidade, repletas de viajantes pobres, rufias, ou simplesmente pessoas com um gosto menos refinado. Não me apercebi disso na altura, mas a verdade é que eu não passava de um desses “viajantes pobres”.

A escuridão envolveu o céu por completo. A minha visão embaciada não me permitiu detetar nenhuma estrela, ao contrário da noite anterior, mas mesmo quando mal despregava o olhar do chão, podia ver a neve iluminada pela lua. Que também iluminava a tabuleta desta última estalagem, “O Sino”, de madeira apodrecida onde estava pintado um sino com um pigmento berrante, nada lustroso e desgastado. O estabelecimento era claramente modesto. Nada de varandas ou jardins, nada de cortinas delicadas na única janela. Não tinha uma porta, e sim uma espécie de cancela de madeira, só cobrindo a metade inferior da entrada. Enregelado, observei o interior abarrotado de pessoas e cheio de vida, mas uma vida suja, que nunca antes pertenceu à minha realidade, como um flautista desafinado, uma minúscula lareira a crepitar fazendo mais fumo do que fogo, o som de talheres a baterem numa evidente falta de etiqueta, e os homens a tentarem apalpar as criadas, tanto os bêbados como os sóbrios. O simples facto de eu pensar em entrar num ambiente assim me dava calafrios, porém, esta devia ser a última taberna. Não me restava alternativa.
Entrei, com passos débeis, cambaleando até ao balcão. A gerente estava ocupada a regatear com um cliente, mandando uma menina, com cerca de 11 ou 12 anos, atender-me. Ela usava um vestido azul sujo e o cabelo arruivado preso em duas tranças. Desalentado, recitei o discurso que andava a dizer em todo o lado.

- Eu só quero comida e um quarto. Não tenho dinheiro nenhum neste momento, mas sou nobre, poderei pagar mais tarde. Se me deixarem ficar aqui só uma noite…

- Já percebi, já percebi – disse a rapariga, num tom impaciente. Tinha uma voz um pouco infantil, mas doce, e se não estivesse tão exausto, teria notado um toque de divertimento – Não atribuímos quartos a quem não puder pagar, mas podemos arranjar-te um lugar onde dormir se disseres umas certas palavras.

- Palavras? – Repeti, esperançoso mas confuso. 

Por uns instantes, ela não disse nada. Eu também não. 

- Ah, deves ser mesmo nobre, se a tua mãe nunca te ensinou a dizer “por favor” – suspirou ela – Aguarda numa mesa, depois levo-te os restos de comida que sobrarem destes esfomeados.

Uma asa de galinha e uma maçã. Não era muito, nem estava devidamente temperado, mas mesmo assim agradeci. Onde me deixaram dormir? Nos estábulos, já que a mula tinha sido vendida. Suponho que só acreditei quando me conduziram até lá. Mas era melhor do que dormir ao relento.
Enquanto destrancava a porta, a menina proferiu:

- Amanhã retribuirás com algum serviço.

- Que tipo de serviço? – Questionei

- Depende do que souberes fazer.

Deixou-me. Não sabia fazer nada, mas nem considerei a hipótese de fugir antes de amanhecer. Em primeiro lugar, porque não estava habituado a esconder-me – daí a hipótese nem me passar pela cabeça – e depois, porque ela e a estalajadeira tinham sido corretas comigo. Quer dizer, não fizeram mais que a sua obrigação, mas nas outras estalagens nem isso fizeram por mim. Deitei a cabeça, que latejava. Tentei acomodar-me no feno. Embora a estivesse a experimentar pela primeira vez, já podia afirmar que detestava aquela sensação, a de precisar da piedade das outras pessoas.

A exaustão falou mais alto que o medo. Não tardei a adormecer.

A meio da noite, ouvi um grito estridente. Um grito de uma mulher…

Ergui-me rapidamente, sentido o coração na boca, e tentei equilibrar-me, mas parecia que a dor deixada pela queimadura só se tornara mais agoniante e intensa. O grito, ecoando na minha cabeça, em nada ajudava. Meio agachado, com bocados de feno agarrados ao cabelo e à roupa, perscrutei o que me rodeava, tentando enxergar através do bréu. Já não faltava muito para o sol nascer, e detectei com facilidade um vulto no canto dos estábulos.

A mulher tinha os cabelos desgrenhados e os olhos arregalados, com a boca escancarada num grito agudo e aflito, fitando-me como seu eu fosse alguma criatura pavorosa. Encolhida contra a parede, agarrava as roupas com força. Mal se movia, apenas gritava. Quando os meus olhos se adaptaram melhor à escuridão, descobri que ela ainda era muito jovem, mas tinha umas olheiras profundas e uma aparência desleixada, quase dando a impressão de que não queria atrair olhares, parecendo mais velha do que realmente era. Não sabia o que fazer para a silenciar.

- Ei, vá lá, não grite – pedi, no tom manso que se usava para acalmar animais agitados. Endireitei-me, mas ao fazê-lo, era começou a gritar ainda mais – Não grite. Por favor, acalme-se… - esperava que usar o “por favor” recém-aprendido sortisse algum efeito, mas não foi lá muito eficiente.

Comecei a aproximar-me, mas o pânico da mulher tornou-se visivelmente maior. Começou a deslizar ao longo da parede até se encurralar a si própria, a um canto, choramingando e esperneando deploravelmente. Tentei sussurrar palavras tranquilizadoras enquanto me aproximava, devagar. Porém, quando já estava a dois metros de distância o estado dela era de histerismo. 

- Afaste-se! – Guinchou, arrancando uma farpa da madeira e balançando-a pateticamente diante da minha cara – Afaste-se ou mato-o!

- Não vai conseguir – respondi, honestamente. – Mas está a sangrar da mão por agarrar a farpa com tanta força. Não sei o que teve de passar, mas não estou aqui para lhe fazer mal. Deixe-me ajudá-la… - Dei um passo, sem sequer pensar muito nas consequências do meu movimento.

Ela soltou um grito desumano, de dor e de pavor, e de alguma maneira conseguiu alcançar a porta e fugir. Fiquei ali, especado. Baixei o olhar, deparando-me com um rasto de sangue que devia ter caído da mão que a mulher cortou. Devia ter sido um corte profundo… Porquê que ela reagiu assim? O quê que teria acontecido para não me deixar ajudá-la?! Não era difícil supor que passara por algum acontecimento traumático e ficara assustada ao encontrar-me quando finalmente encontrara um lugar para dormir, mas era um exagero reagir assim, não era?

Só depois me recordei do que acontecera a mim próprio… e compreendi que o pesadelo não se quebrara.
Suspirei. Não conseguiria voltar a dormir, portanto sacudi a capa e dei o meu melhor para seguir em frente.
Sentei-me ao balcão da estalagem, aguardando que a gerente chegasse. A mulher pôs primeiro as raparigas a trabalhar e só depois deixou de me ignorar. Atordoado como estava, não me apeteceu falar do que aconteceu naquela noite, e se a gerente ouvira o grito – o que me parecia bastante provável – também não o referiu. 

- Bebe – mandou, pousando uma caneca com chá à minha frente. Se é que se podia chamar àquilo chá. Contudo, surpreendentemente, a minha garganta estava tão ressequida que bebi toda a infusão sem reclamar.

– Bem, o quê que tu sabes fazer para retribuíres?

- Err… acho que não sei fazer nada – admiti. Não queria mentir a quem me ajudava.

- Bah, não sei até que ponto o teu conto ridículo é verdade, já nem me refiro a varrer ou lavar pratos. Mas deves ter algum ofício, ou não?

- Só aprendi a lutar e a domar magia.

- Humpf, magia! E podes fazer magia agora? – Perguntou, indolentemente

Resignado, abanei a cabeça em negação.

- Pois, a magia é inútil, já que só pode ser canalizada se o mago tiver grandes reservas de energia. E eu sei do que falo – reforçou – Bem, mas pareces ser um jovem forte. Depois ensino-te a arrancares ervas daninha, quase todas as plantas cedem à neve e essas malditas continuam aqui.

Afastou-se, resmungando qualquer coisa. Quando o fez, um homem tocou-me no ombro.

- Disseste que sabes lutar, rapaz? – Abordou.

Era um homem relativamente alto e forte, que não parecia rico, mas aparentemente se safara o suficientemente bem na vida, ao ponto de ter adquirido uma camisa e umas botas em condições. A sua aparência não era particularmente chamativa, mas pelo menos não cheirava tão mal como os viajantes que visitavam este tipo de taberna, e tivera o cuidado de aparar o cabelo e a barba. Trazia os braços a descoberto, exibindo inúmeros cortes e cicatrizes como se fossem troféus.

- Disse, sim – confirmei.

Sempre que não sabia quais as intenções da pessoa com quem estava a lidar, respondia com sinceridade. Cheguei a acreditar que este homem me poderia ajudar, ao vê-lo sorrir. Quem sabe se não precisaria de ajuda para proteger algo e me pagaria pela ajuda.

Fui tão inocente…

Ele agarrou numa cadeira e atirou-a contra mim, ignorando o protesto das criadas. Com a proximidade, apenas tive tempo de erguer um braço para me proteger, ficando dorido com o impacto. Cambaleei para trás.

- O quê que lhe deu?! – Exclamei, chocado.

- O quê que me deu, ainda perguntas? Nada! Só estou à procura de diversão e a verificar se sabes mesmo lutar alguma coisa – rosnou.

- Dê-me uma espada e descobre-se já – desafiei. Não pretendia ser derrotado em algo que sabia fazer. 
- Uma espada? Ha, ha, é preciso ter descaramento para exigir uma espada!... – Dobrou-se de riso – Olha, puto, não sei de onde é que tu vieste, mas aqui luta-se de mãos nuas e vence aquele que incapacita o adversário de se LEVANTAR!...

Gritou a última palavra e lançou-se na minha direção, com as mãos visando o meu pescoço, como se fossem duas garras. Esquivei-me no último segundo, em direção ao centro da sala. Fleti as pernas, firmando a minha posição, e ponderei se devia usar a pouca energia que me restava para canalizar um feitiço. Mas talvez ainda tivesse chance sem ele…

O homem voltou o pescoço na minha direção, com o tronco inclinado para a frente, fitando como um touro enfurecido. Não podia evitar sentir receio: pesadelo ou não, se eu fosse morto, nunca mais voltaria à minha antiga vida. E não duvidava das intenções assassinas do homem – provavelmente fôra assim que ele se safara na vida…

Ele correu. Eu movi-me para o lado, e tive o cuidado de manter a distância enquanto ela se preparava para guinar na minha direção. Enquanto nos movimentávamos em círculo, esvaziei a mente, perscrutei a estalagem com o olhar, sabendo que eu era uma nulidade a lutar com as mãos nuas. Detetei uma faca pequena numa mesa a um canto. Se me conseguisse aproximar…

Fingi ir na direção oposta, e enquanto o homem se preparava para correr nessa direção, fui para a outra. Pelo canto do olho, notei que ele continuara sempre na mesma, porém, estupidamente, não me ocorreu que tivera um propósito ao fazê-lo e esforcei-me por alcançar a faca.

Ouvi um estrondo. Duas canecas saíram a voar na minha direção. Das poucas pessoas presentes, nenhuma se incomodou em avisar-me.

Senti um impacto na parte detrás da cabeça e um líquido quente começou a escorrer. Não, não era a bebida derramada. Era demasiado vermelho para isso. Os estilhaços saíram disparados, exceto os que ficaram emaranhados no meu cabelo. Apoiei-me na mesa com a ponta dos dedos, respirando fundo na tentativa de impedir os meus joelhos de ceder. Voltei-me, preocupado. Onde raio estava a outra caneca?

A resposta veio enquanto eu recuava. Tropecei nela e caí de costas. Ouvi o ruído de algum osso a estalar. Eu era tão estúpido!...

- Achavas que podias fugir para sempre, fedelho? – Disse o homem

Tentei levantar-me e agarrar a faca, duas mesas ao lado, mas ele foi mais rápido. Agarrou-me pela gola e ergueu-me do chão, esmagando-me contra a parede – Achavas, fedelho? Achavas que me estavas a conseguir enganar?! – Abri os olhos, encarando os dele dominado pelo medo. Não fui capaz de retorquir, de dizer nada. E se ele me batesse, e se ele me matasse, e se ela descobrisse quem eu era? O quê que eu poderia fazer? Se eu não tivesse sido incompetente ao ponto de acabar nesta situação, ele não poderia fazer comigo o que quisesse! O quê que eu ia fa…

O homem sorriu como um maníaco, o seu sorriso mais parecendo um esgar. E lançou-me contra a lareira.
Antes mesmo que perceber o que estava a acontecer, já o cenário dançava à minha volta, deixando-me totalmente tonto, até que embati contra a laje, e tudo o que estava em cima da lareira caiu. Quis levantar-me, mas sentia-me tonto e o homem aproximou-se. Pontapeou-me, no queixo, nas costelas… Arfei. O meu tornozelo começou a latejar, alertando-me de que estava torcido. Bem me contentaria em dar-lhe atenção, mas sempre que o homem me batia, uma nova dor sobrepunha-se à antiga, e iam-se acumulando, mais e mais, até eu julgar que tinha atingido o meu limite, mas certamente não tinha, pois a dor persistia em aumentar.

Estava a transformar-me num saco de pancada…

Voltei a ser erguido contra a parede. O homem fez a minha cabeça bater na madeira. Já a sangrar, os meus ouvidos começaram a zumbir…

- É só isso que tens para me mostrar? Não tinhas dito que sabias lutar, imprestável?! – Não falou assim tão alto, mas no meu estado atual, a sua voz correu até às minhas entranhas, repercutindo-se. Queria vomitar.
Olhei por cima do ombro dele. Na mesa à minha frente, lá estava ela a faca. O homem voltou a bater com a minha cabeça na parede. Com os olhos já semicerrados, estendi o braço, mas não chegava. Claro que não. A cabeça embateu mais uma vez. A minha visão começava a ficar turva e a dor tornava-se gradualmente menos aguda, sinal de que estava a perder os sentidos. Outro impacto. Fechei os olhos, prestes a render-me…

Passaram-se imagens na minha cabeça. Só não diria que estava a morrer porque todas as memórias que vislumbrei retractavam combates em que participei. De simples treinos à batalha com o Grande Terror, revi todos os golpes que tinha usado: teletransporte, saltos incríveis, movimentos da espada que mais pareciam dançados… comparados com a luta que enfrentei agora, todos os floreados que eu fazia me pareciam desnecessários e sensacionalistas, para não dizer surreais. Nada do que aprendi me poupara a este momento.

Foi então que me lembrei de que ainda me restava energia suficiente para um feitiço. Um que fosse de verdadeira utilidade.

Desmerecendo o martelar da minha cabeça contra a parede e a perda de sangue, reuni toda a minha força, e fiz a faca levitar desde o topo da mesa até à palma da minha mão estendida, para além da visão do brutamontes. Agarrei-a, incerto devido à dormência dos dedos. Lentamente, tomei consciência dos berros que o homem soltava enquanto me sacudia, e abri os olhos embaciados. "É só isto?! É, filho da mãe?!” Espetei-lhe a faca entre as omoplatas, sentindo-me estranhamente calmo e desprovido de emoções.

O homem calou-se de imediato, sentando-se desastradamente no chão, agarrando o peito, o seu sorriso sádico desaparecendo à medida que uma mancha vermelha alastrava pela sua camisa. Olhou para mim, aturdido, confuso. 

- Não, não era só isso – respondi, num sussurro. 

Ele morreu, e eu deslizei até ao chão. Os meus sentidos baixaram drasticamente, o que justifica o facto de eu ter sentido que me arrastavam. Uma parte de mim ainda tinha esperança de que me levassem para uma cama confortável, onde me poderia recuperar. No entanto, ao abrir os olhos, constatei que estava estendido na neve. Devia ter suspeitado de que ninguém quereria um corpo meio morto no interior de uma taberna…
Mesmo assim, quando me ergui, horas mais tarde, estava tão exausto que fui incapaz de me sentir indignado. Em vez disso, grato, recolhi as ligaduras e o cantil de água que haviam deixado ao meu lado e arrastei-me até uma sombra abrigada de olhares indesejados.
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Há sempre uma primeira vez para tudo. Embora só o tenha compreendido meses mas tarde, foi algo que comecei a aplicar desde o momento em que coloquei os pés nesta cidade. Já tinha dormido num estábulo e sobrevivido a uma rixa. Agora, determinado a conseguir sobreviver à fome, estava também disposto a roubar. Mendigar nunca me passou pela cabeça, provavelmente porque ainda não estava convencido de que me encontrava no mesmo nível que um pedinte. Assim, manco, no meu canto da cidade junto à estalagem “O sino”, comecei a observar como é que os ladrões agiam. Alguns parravam pelo meio das multidões e arriscavam-se a colocar as mãos nos bolsos e nas carteiras das pessoas, o que nem sempre dava resultado. Depois, haviam as quadrilhas, onde os grupos atuavam divididos: enquanto alguns membros criavam algum tipo de entretenimento para atrair a atenção da multidão, os restantes indivíduos roubavam. Havia ainda aqueles que se dirigiam directamente às bancadas e desatavam a correr antes de serem denunciados, algo que seria impossível para mim, com o tornozelo tão inchado.

 Passei assim 3 dias. Durante o dia, observava a rua diante de mim, e de noite, fazia os possíveis para adormecer. No Norte, cercado por mantos de neve, as noites eram frias, mas o frio atenuava as dores, e a capa que o príncipe Lamaken me entregara era quente. Nãmira, Lamaken e a minha família… Acontecera tanta coisa nos últimos dias que até duvidava da sua existência.

No 4º dia, decidi tentar a minha sorte, tanto porque já era capaz de me levantar, como por estar a morrer de fome. Tinha delineado um pequeno plano para compensar a minha falta de experiência, e pretendia fazê-lo resultar. Comecei a andar pela cidade, ignorando a dor no tornozelo, ou o martelar na minha cabeça intenso ao ponto de me fazer soltar suores frios. Procurei por uma rua movimentada, encontrando-a junto à praça principal. Fui mancando por entre a multidão. Fingindo que tropeçava – não foi muito difícil, e por pouco não tropecei realmente – dei um encontrão a um indivíduo que passou por mim e tirei algo do seu bolso. Ele olhou para mim de relance, prestes a protestar, mas depois notou que eu estava enfaixado.

- Desculpe – murmurei, baixando o olhar, como se estivesse envergonhado ou arrependido. E não estava? 

Estava a tentar parecer ainda mais fraco do que já era, e essa sensação queimava-me por dentro.

O indivíduo foi-se embora a praguejar, sem olhar para mim duas vezes. Isso deixou-me, por incrível que pareça, satisfeito por ter sido alvo de pouca atenção. E quando abri a mão, encontrei duas moedas de cobre.

Passei o resto do dia a roubar, embora não me comparasse com os ladrões profissionais. Com excepção de uma única moeda de prata, tudo o que encontrei foram míseras moedas de cobre. Já o esperava, afinal, a maioria das pessoas que roubei também estava longe de ser rica, mas pesava-me saber que estava a tirar-lhes o pouco que tinham, sensação que piorava por eu estar faminto e saber que essas pessoas acabariam no mesmo estado se não recuperassem dinheiro em breve. Mas o arrependimento terminou depressa, assim que, com o que conseguira, pude comprar dois pães de centeio e ainda uma pata de codorniz. Voltar a encher o cantil com água também não era difícil no Norte: Bastava colocar neve lá dentro e esperar que derretesse. Não, eu não gostava de me sentir pobre mesmo que aquilo me parecesse um banquete, julgamento que queria evitar a todo o custo, o mínimo que poderia fazer pela minha dignidade. Mas era reconfortante ter o que comer quando já não se tinha mais nada.

Fui dormir, mal acabei de devorar a carne e lamber os dedos gordurosos. Onde estavam as minhas maneiras? Nem eu sabia, o que era aterrador. Enrolei-me sobre o próprio corpo, tapei a própria cara com o manto e, quando dei por mim, estava a tremer. E a chorar.

No dia seguinte, após ter comido metade de um dos pães que comprara na véspera, fui à procura de alguém que me pudesse dar boleia para sul – não podia desperdiçar mais tempo aqui, e a mancar nunca chegaria a lado nenhum. Encontrei um mercador de peles que estava de partida nessa direção, mas só aceitou levar-me quando lhe ofereci a moeda de prata. Não era pessoa de falar muito, apenas o necessário, mas para mim isso foi um alívio. Não queria falar. O simples esforço para pensar exigia mais de mim do que o que tinha. Deixei.me embalar pelos solavancos da carroça e ser levado o mais longe possível. Cada um de nós comia a sua própria comida, em silêncio, dedicando-se a reflexões sombrias. Até que a viagem terminou.

- Chegamos, podes descer – disse o mercador barbudo – Agora o meu destino já não fica nesta direção, mas se seguires por aquele trilho, irás cada vez mais para sul. Bem, vê se melhoras, rapaz. Está com um péssimo aspeto.

- Obrigado – disse eu. Ao fim e ao cabo, o velhote nem era má pessoa.

Segui o trilho serpenteante que ele me indicara, adentrando na floresta gelada. Durante 5 dias, não tive o que comer ou onde dormir, resignando-me a fazê-lo na neve parcialmente derretida, ou de encontro a alguma árvore. Sentia-me sonolento e confuso, e já nem me apercebia da fome que roía o meu estômago. Nem do corpo dorido. Não saberia como parar. Sul. Era a única meta que se apresentava na minha cabeça. A água do meu cantil começava a acabar, mas já não a podia repor, pois como rumava a sul, o aumento de temperatura reduzia a quantidade de neve. À medida que os dias avançavam, acordava ainda mais cansado do que quando me fora deitar. O único som que se ouvia além do ruído dos esquilos e dos pássaros era o arrastar das minhas botas. Com o tornozelo ainda longe de recuperado, prosseguia devagar, mas a persistência fez-me avançar mais do que esperava, e ao fim do quinto dia já nem avistava resquícios de neve, mesmo que o frio se mantivesse. 

Ouvi uma música, um cantarolar animado. Seguindo o som, fui ter à orla da floresta, e avistei uma fazenda. O meu estômago roncou quando reparei no que se passava: uma família alegre cantava enquanto a mulher da casa preparava sopa num grande caldeirão, na cozinha. Era até espantoso uma fazenda ter mais que uma divisão e estivesse em tal bom estado, como se estivesse isolada dos perigos do mundo. Pareciam ter tido uma boa colheita, o que era raro, mesmo para uma zona não tão a norte assim, e tinham até um burro, um poço e um monte de lenha para colocarem na lareira e construir coisas. Era muito mais do que a maioria das famílias pobres poderiam desejar. E muito mais do que o que eu tinha. 

“Vou perguntar-lhes se me posso juntar à refeição” – Foi o meu primeiro pensamento. Depois, reparei no meu estado andrajoso. Em como contrastava com aquela família. Seria ridículo tentar aproximar-me com uma intenção tão inocente, pois seria obviamente escorraçado.

Sabia que teria de agir enquanto a família estava entretida. Andei tão depressa quanto podia, deslocando-me pelo lado oposto ao da janela, e contornei a casa até me aproximar das traseiras, procurando algo com que transportar o que roubaria. Encontrei uma camisa e improvisei uma trouxa, onde coloquei alfaces, cenouras, tomates e outros legumes que ainda não estavam prontos para ser colhidos, e por isso se encontravam na horta. Abusando da sorte, icei o balde do poço e enchi o cantil. O mecanismo rangeu.

- Ei, que ruído foi esse? – Ouvi uma voz de homem a perguntar

- Eu irei verificar – ofereceu-se alguém.

Desatei a correr, ou a tentar, mas o maldito do burro assustou-se e denunciou-me. Sou incapaz de descrever o pavor que senti quando uma mulher assomou à janela e me viu, gritando. Fugi em direção à floresta, mas a meio do caminho, escutei passadas rápidas atrás de mim. Não me voltei para trás – sabia que não tinha tempo para isso. Fiz um esforço por ignorar a dor e dei às pernas.

- Ladrão maldito! É bom que corras, seu retardado, porque se eu te puser as mãos em cima!... – Era a mesma voz que tinha ido verificar.

Eu realmente tentei. Principalmente quando compreendi que, além do dono da voz, vinha outra pessoa atrás de mim. Contudo, quando já tinha alcançado a floresta, tropecei e aterrei de cara no chão. Sentindo que se aproximavam de mim, sem nunca largar a trouxa, rebolei para o lado, mesmo a tempo de evitar que me cortassem a cabeça. De barriga para cima, fitei o jovem, apavorado perante a fúria que flamejava no olhar dele. Ergueu a enxada e preparou-se para a descer sobre mim.

- Pára! Pára, não vale a pena matá-lo!... Gritou uma mulher.

Só tive tempo de olhar de relance para a jovem que acabara de me salvar a vida antes de aproveitar a oportunidade para voltar a fugir. Eles eram, sem dúvida, irmãos, mas enquanto corria, ouvi berros e o som de uma estalada. Podia jurar que a rapariga começou a soluçar…

O som dos soluços dela e o a responsabilidade por ter arruinado a felicidade daquela família perseguiu-me até à noite, mas senti-me uma pessoa ainda mais desprezível quando, após começar a comer os legumes crus, me apercebi de que não recuaria no tempo se tivesse a oportunidade, implicando continuar de barriga vazia. 

Passaram-se mais dias. Até perdia a conta. Durante esse espaço de tempo, continuei a vaguear pelo trilho, tentando não atribuir importância às provisões que se esgotavam. Começou a chover. A chover imenso, era um dilúvio. As minhas botas, das poucas coisas refinadas que trazia da minha antiga vida, não tardaram a ficar enlameadas, e eu, ensopado. O cabelo emaranhado, a roupa pesada e colada ao corpo, o nariz fungoso… Quando a comida acabou, passei a alimentar-me de pequenas bagas que encontrava nos arbustos.

Devo ter comido algumas que não me caíram bem.

Nada bem.

Deviam ser bagas venenosas. Só me lembro de ter encontrado uma espécie que não reconheci, mas precisamente por não conhecer, a aparência dela não se encontrava na minha memória. Não tinha forças para recordar, como se a minha cabeça, latejando, tivesse drenado a energia do resto do meu corpo para me manter consciente. Contudo, eu não queria permanecer consciente. Quando já nem me aguentava em pé, embati contra o tronco de uma árvore e deixei-me deslizar até ao chão. Ali fiquei, a contorcer-me com dores de cabeça, barriga e a espumar da boca. A vomitar e tossir, vomitar e tossir de novo até me engasgar com a própria saliva ou com o próprio vómito, durante tempo suficiente para fazer os meus pulmões urgirem por ar. Num estado que nem era a dormir nem ficar acordado, apenas febril, encontrava-me deitado em cima do vomitado. A meio do primeiro dia, a minha garganta sabia mal e estava ressequida, mas já nem tinha água para beber, nem a mínima vontade de pegar no cantil em troca de algumas gotas. 

Não queria mesmo continuar consciente, mas a dor impedia-me de desligar. Desligar da desgraça que me cercava. Não queria ver, não queria ouvir, não queria sentir…

Queria?

No meu íntimo, eu sabia que desligar-me da dor equivaleria a morrer. E morrer equivaleria a ser fraco. Eu sabia que não era forte, ou pelo menos, o dia-a-dia tentava demonstrá-lo da forma mais difícil, contudo, tinha de ser capaz de suportar este sofrimento. Eu sabia que ele não era, ao contrário do que me tentava levar a acreditar, interminável. E sabia que, se o suportasse, seria recompensado acabando muito mais forte.

Sabia?

Eu queria acreditar, mas já não sabia nada. Como se não bastasse o mal-estar físico, comecei a delirar. Quando provavelmente estava prestes a adormecer, vi imagens da minha família. Com um aperto no coração, deixei que a minha mãe, a Rainha, pusesse de parte as suas leituras para me levar uma infusão doce, muito doce, aos lábios; E deixei as minhas irmãs Lenna e Sulfira contarem-me histórias, episódios divertidos que todos vivemos juntos e que me animassem; O meu pai ofereceu-me apoio com um olhar confiante e terno. Quase me abstraí da dor. Mas de seguida apareceu Nãmira, não para cuidar de mim mas para sussurrar ao ouvido do meu pai. Assim que o rei voltou a encarar-me, fazia-o com desaprovação, e o mundo caiu-me aos pés. Os meus ferimentos fizeram-se notar repentinamente. O meu estômago pareceu incendiar-se, as chamas subiram pela garganta, queimando-a, e obrigaram-me a abrir a boca para as libertar, para tentar explicar a minha inocência incontáveis míseras vezes, praguejando, gritando, soluçando, implorando. A minha cabeça ia explodir se não me ouvissem!...

E ouviram. Com uma calma fria e arrepiante, ouviram-me, toda a família, até eu ficar sem voz nem palavras, a minha mente confusa a mesclar o pesadelo com a realidade cruel. Incapaz de dizer mas nada, vi como as pessoas que mais amara na vida eram engolidas por um vórtice negro, uma a uma, e ainda assim me olhavam com hostilidade, como se eu fosse culpado por tudo. A cicatriz na minha testa, deixada por um ferro em brasa, a marca da minha vergonha, salientava isso mesmo, essa culpa, pulsando e agoniando-me.
Mesmo quando os delírios terminaram, já não era o meu corpo que mais me enojava. Eu sentia nojo até da minha alma e dos medos que ela arcava. Tinha medo do ruído dos insectos rastejantes, tinha medo das sombras, tinha medo da luz, tinha medo de mim próprio, tinha medo do medo. E tinha medo, um medo deplorável, de estar sozinho. Sim, porque eu detestava aquela solidão mais do que tudo. Sentia-me tão ignorado e desesperado… Não compreendia o que estava aqui a fazer, se o mundo amaldiçoava a minha existência. 

Mas não podia desistir ainda, enquanto havia a esperança de ser alguém quebrar esta minha solidão. “Sei que o que dizes é verdade, por isso vou ajudar-te”. Agarrava-me a essas palavras de Lamaken, acreditando que me ajudaria a recuperar o trono e a minha dignidade, como um náufrago se agarra a uma tábua flutuante. 

Foi por essas palavras que me voltei a erguer no dia seguinte.

Deparei-me com uma cidade…

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